" Paz das montanhas, meu alívio certo! "

30/11/2010

Idriss, a minha estrela Tubu

  
"Não há dia nenhum que passe sem que imagens de crianças se atravessam na minha memória, crianças que a presença dos meus filhos mantêm vivas, comoventes e motivadoras de uma acção que norteia a minha vida há vinte anos.Vou falar-vos do Idriss, que operei no Chade em 1981. Marcaram-me os seus olhos apavorados, interrogadores e tristes quando, baleado pelos líbios, me veio parar às mãos na tenda cirúrgica que tinha então montada no oásis de Kulbus, na fronteira com o Sudão. Esses mesmos olhos revi-os nas crianças que conheci desde o equador, a Geórgia, o Azerbaijão, a Somália, o Nepal, a Palestina, o Líbano, o Iraque...e em mais de quarente países subdesenvolvidos 8 hoje hipocritamente apelidos de « menos avançados »e amanhã possivelmente « em avanço progressivo ». Mas o Idriss marcou-me particularmente. Hoje ainda penso nele, nos camelos e no magnífico céu estrelado do Sara.
O Idriss guardava cabras e camelos. Tinha oito anos quando teve a infelicidade, e com ele o seu primo Mustafa e outras quatro crianças pastoras, de se cruzar com uma patrulha Líbia das forças de ocupação daquele país na Chade, que suportava então o presidente GouKoni Oueidei. Os pastorinhos mereceram como saudação várias rajadas de metralhada que mataram quatro pequenos, muitos camelos e cabras. Safaram-se Idriss e Mustafa. Os outros, diziam-me os meus heróicos e espartanos amigos tubus, tinham enriquecido o número de estrelas no firmamento, pois eram inocentes. O Mustafa, de seis anos, « felizmente»nomeio de tanta estupidez, só tinha levado um tiro na perna direita que lhe fracturou o fémur. Foi fácil ajuda-lo e ficou bem. O Idriss estava pior. O meu primeiro pensamento, ao ver o estado do seu braço esquerdo, foi amputá-lo: cirurgia expeditiva mas salvadora de tantas vidas em situações extremamente carenciadas como aquela em que me encontrava. Tanto mais que  trabalho não me faltava, com tanto tiro, tantas minas e tanta carência sanitária. Posto Perante a minha intenção de lhe cortar o braço, o Idriss rompeu num choro, implorou e ...conveuceu-me: faria tudo por tudo para lhe manter o braço partido, estilhaçado, martirizado. Tive de lhe amputar o quarto e quinto dedos da mão, mas o resto cumpri: reparações, enxertos de pele, gessos... Foi bonito e Alá foi-nos favorável enquanto o operei, por tres vezes, em cima das caixas de obuses libioss que me serviam de mesa operatória. Os pais, pobres e gratos, quizeram oferecer-me duas galinhas, que recusei, poi, embora passando mal, ainda estava menos magro do que eles. O Idriss, rapaz esguio e sorridente, voltou à sua pastorícia e aquela mão esquerda de tres dedos servia-lhe para transportar um balde de água do poço, agarrar um pau e atirar uma pedrada aos seus pachorrentos camelos. O meu Idriss, se ainda for vivo, terá vinte e quatro anos e, estou certo, olha comendo uma tâmara para o magnifico céu estrelado do Chade, pensando nos seus amigos e, quem sabe,no fernado que, tal como uma estrela então fiquei rico graças ao Idriss, consegui ir além do que pensava ser capaz e desde então contunuar fiel ao que lhe prometi: cada vez que olho para as estrelas penso no Chade e no Idriss. e sonho com um mundo sem balas, alimentando a esperançade um dia assim ser´para bem de todos os Idriss.


P.S- em 1983 voltei ao chade. Não consegui notícias do Idriss. oxalá não seja já uma estrela..."

                           - Fernando Nobre-



Cartaz da cruz vermelha internacional exibindo fotografias de crianças em campos de refugiados no Chade, intitulado           " Ajude-nos a encontrar nossas famílias"- 2005
Foto de um campo de refugiados no Chade-2005

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